oração

Oração: Que as palavras do meu coração saiam como gotas, e que reguem as folhas que já secaram, amém!

terça-feira, 22 de março de 2016

Conto: Presságio

A última coisa que me vem na memória é a dor aguda da pancada que recebi em minha cabeça. Depois tudo ficou negro e sombrio como a noite. Tinha acordado mais cedo. Eram seis e dez da manhã. O relógio despertaria vinte minutos depois, seis e trinta, mas por algum motivo senti que deveria sair mais cedo daquela cama. O sol estava nascendo. Levantei lentamente, calcei minha havaiana, e caminhei até o banheiro, ainda sonolento. Parei em frente ao espelho. Encarei a minha imagem e fiquei parado por alguns minutos. De repente tive a impressão de um vulto passar por mim. Minha espinha gelou. Virei-me em uma ação instantânea, mas nada vi. Olhei novamente para a minha imagem refletida no espelho. Fechei os olhos com força e os abri. “É o sono. Só pode ser”, pensei. Escovei meus dentes tentando focar meu pensamento em algo que fizesse amenizar a sensação que me invadia: algo estranho, uma mistura de insegurança e pavor. “Devo estar doente. Preciso trabalhar”.

Vesti o uniforme de trabalho: o primeiro terno que encontrei pela frente. Tentei comer um pedaço de pão seco, mas não tinha apetite. Meu celular tocou. Era a primeira cliente do dia avisando que estava indo com o marido ver o imóvel. Eu disse para me esperarem lá, que chegaria em meia hora. Desliguei o telefone e o coloquei na bancada. Ele começou a vibrar. Estranhei, pois não o tinha colocado no silencioso. Atendi. A linha estava muda. Eu disse vários “alôs”, mas não obtive nenhuma resposta. Foi quando senti um toque em meu ombro e me virei. Não havia ninguém. O telefone começou a chiar, e de repente ouvi um som estranho do outro lado: parecia um miado de gato. Mas não um miado qualquer. Era um som aterrador. Deixei o telefone cair com o susto e a campainha tocou. Corri até a porta. Vi por baixo dela uma sombra se movimentando. A campainha tocou novamente. Devia ser alguém procurando meus serviços de corretor. Destravei a porta e a abri. Não tinha ninguém lá. Senti imenso calafrio. Não sabia o que estava acontecendo. Dei um passo à frente e a porta se fechou atrás de mim. Virei-me rapidamente e tentei abri-la desesperadamente quando senti o choque de algum objeto pontiagudo sendo arremessado em minha cabeça. O sangue escorreu, caí no chão e tudo se escureceu.

Abri meus olhos. Era noite. Meus braços e pernas estavam amarrados e minha boca amordaçada. Tinha sido seqüestrado. A cabeça doía pela pancada, e as mãos começavam a sangrar com as cordas apertadas. Tentei levantar em vão. Foi então que percebi que estava em cima de uma lápide. Por todos os lugares em que minha visão alcançava, via lápides, cruzes, velas ainda acesas. O medo alcançou um nível em que eu nunca tinha experimentado. O desespero me fez relutar contra as cordas que me prendiam. Precisava sair dalí rapidamente. Foi então que vi um caco de uma garrafa quebrada a duas lápides de onde eu estava. Arrastei-me até lá. Peguei o caco com um das mãos e comecei cortar a corda. Minha mão sangrava, pois o caco também a cortava, mas o desespero em sair daquele pesadelo era maior que a dor.

Alguns minutos depois eu estava livre. Arremessei a corda na lapide e comecei a correr e gritar por socorro. Por mais que eu tentasse fugir, aquele cemitério parecia não ter fim. Foi então que tropecei em algo e caí no chão. Fechei meus olhos quando senti algo subir por minhas pernas. Ouvi um miado suave. Abri meus olhos e o vi: um gato de pelos tão negros que ele quase sumia com a noite. O animal deitou em meu colo. Meus olhos se fixaram no bichano, e uma curiosidade me invadiu, dividindo lugar com o pavor. O gato me olhou intensamente. Seu miado se calou. De repente seus pelos enrijeceram, suas garras afiadas cravaram em minhas pernas, seus olhos medonhos ficaram vermelhos e ele emitiu o mesmo som que eu tinha ouvido no meu celular de manhã. Arremessei o gato para longe, levantei rapidamente e sai correndo em busca de uma saída. Vi uma casinha simples, no meio do cemitério. Talvez houvesse alguém lá. Corri em direção a ela. Entrei. Apenas um lampião alumiava seu interior. “alguém aqui?” perguntei, e nada. Vi um papel em cima de uma mesa no centro da sala. Aproximei-me. No papel estava escrito o meu nome. “precisa de ajuda?”. Assustei-me com aquela voz e deparei-me com uma figura me observando na porta de saída da casa. Era o coveiro: senhor já de idade avançada. “Por favor, me ajude sair daqui” eu disse. Ele deu um passo em minha direção e eu retrocedi. “O que houve com você meu rapaz? Parece assustado!”. O velho colocou uma lanterna na mesa e sentou-se em uma cadeira de fio perto da mesa. “Sente-se jovem. Vamos conversar” ele disse. “Onde é a saída?” perguntei. Meu coração não desacelerava em nenhum instante. “Não pode sair por aí sozinho. É muito perigoso. Não queira saber o que acontece lá fora” o velho fez uma pausa, tirou um maço de cigarros, pôs um na boca, pegou o isqueiro no bolso e o acendeu. “Mas me conte: como veio parar aqui?” perguntou. “Eu não sei” eu disse ainda apavorado... “Está tudo muito estranho”, completei. “Coisas estranhas acontecem”, ele disse, tirou o cigarro da boca e assoprou a fumaça lentamente. De repente, uma sombra negra surgiu de fora da casa e parou nas pernas do coveiro: era o gato. Assustado, eu quis sair de lá. “Calma meu rapaz. É só um gato. Indefeso e inofensivo”, disse o coveiro. O bichano passava por entre as pernas do velho, que acariciava seus pelos negros. De repente o velho parou, olhou-me e disse: “e esse seu amigo aí do seu lado... não sabe falar?”. Meus pelos enrijeceram e meu músculo se contorceu. Virei-me lentamente para ver de quem o velho falava, quando comecei a perceber a figura distorcida de uma pessoa que a poucos instantes não estava lá. De repente a pessoa também começou a se virar para ficar de frente a mim, e não acreditei quando vi o seu rosto: era minha cópia e semelhança. Era outro eu. Afastei-me dele e vi em suas mãos um machado sujo, enferrujado. O velho levantou da cadeira e disse: “jovem, é agora!”. O outro do meu lado levantou o machado e cravou-o em meu crânio. O sangue jorrou.



Abri os olhos. Eu estava deitado na cama. Acordei assustado. Não tinha amanhecido. Era seis e dez, e o relógio despertaria vinte minutos depois, mas por algum motivo precisava levantar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário