oração

Oração: Que as palavras do meu coração saiam como gotas, e que reguem as folhas que já secaram, amém!

terça-feira, 22 de março de 2016

Conto: Dia de Cão

Confesso que tais escritas já habitavam em meus pulsos há um bom tempo. Só agora se materializa nessas linhas. Conta-se de certo menino, o nome não vem ao caso, mas o caso, do acaso talvez, é o que figura a nossa história. O menino, sem nome aqui, encontrava-se todo empolgado com seu primeiro emprego. Ajudante de carteiro, que no fim das contas, se tornou mais um tipo de carteiro substituto, pois seu Joaquim, o carteiro oficial, não pôde ir trabalhar no primeiro dia do garoto: estava muito adoentado por conta da baita dor de barriga que também não vem ao caso: passou a noite toda no banheiro. O menino todo empolgado, queria mostrar serviço. Coisa da juventude. Morava em uma cidade pequena, interior do interior, e que também não vem ao caso. Mas o que interessa é: foi-se o garoto entregar as cartas do dia. Afinal, conhecia a cidade, que era pequena e coisa e tal, de ponta a ponta. Não haveria nenhuma dificuldade.  E a princípio não houve. Trabalhou duro no sol quente de lascar e viu que não era tão simples assim a vida de carteiro. As palmas das mãos estavam avermelhadas de tanto batê-las chamando o tal do destinatário. Alguns até apareciam. Outros nem com reza brava. No entanto, era de se esperar que o garoto não conseguisse entregar todas as correspondências. Nem seu Joaquim, que apareceu uma vez no inicio da narrativa, consegue. Mas o fato dos fatos aconteceu no fim do dia. Talvez meia hora antes de terminar o expediente. Ultima carta na bolsa do garoto para ser entregue em uma casa de determinada rua. O projeto de carteiro foi saltitante, afinal, terminaria o dia com grande desempenho por parte dele. Ao chegar à frente da casa, sua empolgação dissolveu-se na consistência do medo. Um cão esperava-o logo ao lado. Para alguns tal fato não mereça tamanha importância para dedicar-lhe uma narração. Mas isso também não vem ao caso. O garoto viu o cachorro. O cão docilmente retribuía os olhares e o rapaz tremia de medo. Ele tinha pavor desse animal, por mais amigo que parecesse ser. E então veio o dilema: bater palma ou não bater? Seu dever era bater. Mas e se o cão mudasse o humor? Quanto medo tinha de ser atacado por ele. E depois de muito debater-se, o garoto bateu umas palmas tímidas, forçadas até. E o cão docilmente olhava o rapaz. Pareceu sorrir. Abanou o rabinho demonstrando felicidade. Nem assim o garoto diminuiu a tensão. Ninguém foi atendê-lo. Precisava aproximar-se mais de perto da casa para ter a certeza de não haver ninguém lá dentro. Começou a chamar o cão de todos os nomes amigáveis que só são ditos ao camarada mais chegado, do tipo "amigão", "companheiro" e afins, e usou adjetivos e substantivos no seu grau diminutivo como forma de carinho, do tipo "cãozinho", "amiguinho", "seja bonzinho". E o cão não se moveu um centímetro. Continuava olhando-o docilmente. E o garoto em passos mínimos foi chegando cada vez mais perto da porta da casa, e quando já conseguia tocá-la, começou a batê-la. Ninguém. Não havia outra saída: mais uma carta sem entregar. Era o fim do expediente. Precisava ir embora. O garoto olhou o cão, que olhava o garoto com muita ternura. O rapaz concluiu que, afinal, seu medo por cachorros era infundado. Eles podiam ser amáveis, como aquele alí, tão dócil e inofensivo. Virou-se aliviado por nada de mal ter-lhe acontecido. Bastou virar, veio o cão e mordeu-lhe o calcanhar e lá foi o garoto correndo pelas ruas da pequena cidade, chorando como criança que era. E nunca mais quis ele saber desse seu primeiro emprego. É, as vezes os mais dóceis são os mais perigosos, mas isso não vem ao caso.

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