Era o ano de 1969, período de comemorações de fim de ano, com as tradicionais reuniões familiares. Sherlock Holmes desembarcara no Brasil numa manhã fria de Dezembro, sabe se lá qual dia da semana. Seu Portunglês enrolado era compreensível, o que facilitava na comunicação. Holmes tinha seus quinze ou dezesseis anos, mas já respirava ares de detetive. O motivo de sua visitação era um só: solucionar um mistério que percorria em um crime cometido no Botafogo. Holmes mal pisou nas terras cariocas e foi logo atrás dos fatos, pois não podia demorar-se muito no Brasil. Deixou coisas a se resolverem em Londres. Encontrou-se com o delegado Almeida, responsável pelo caso, na Delegacia Policial de Botafogo. O delegado contou-lhe os pormenores do caso. Era de um certo Vilela, que abriu uma banca de advogado ali pelas proximidades. Homem de muito prestígio, descobriu que sua esposa Rita mantinha um caso com seu grande amigo de infância Camilo. Vilela, possuído pela fúria, matou-os à queima roupa.
—Se já sabem quem é o assassino, o que estou fazendo aqui? Não há nada para se resolver nesse caso. – disse Holmes, ainda que jovem, impaciente.
—Engano seu, meu caro. – Falou Almeida pegando um saco plástico de dentro da gaveta de sua escrivaninha – há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa vã filosofia.
—Citando Shakespeare agora?
—Sim, meu caro. Pelo simples motivo de que existe um enigma escondido por trás desse crime.
O delegado despejou de dentro do saco vários papéis.
—O que é isso? – questionou Holmes.
—O nosso enigma. – respondeu o delegado. Essas são algumas cartas que Camilo, nossa vítima, recebeu dias antes de ser assassinado.
—E?
—As cartas ameaçavam revelar a Vilela a traição de Camilo e Rita. Mas o intrigante é que não sabemos quem escreveu essas cartas.
Almeida continuou dizendo que Vilela desapareceu, que ninguém tinha notícias dele desde o assassinato, que precisavam concluir as investigações logo, que o remetente das cartas, de certo modo, era o responsável pela tragédia , que descobrir o misterioso remetente das cartas era necessário para que um ponto final fosse colocado naquele conto, pois cá entre nós, a vida é um conto.
—E minha tarefa é descobrir a identidade de quem escreveu as cartas? – perguntou mais uma vez o jovem detetive londrino, que parecia não acreditar na missão que fizera-o vir de tão longe.
—Sim, exatamente essa! – respondeu Almeida.
—Tenho certeza que foi a cartomante. – resmungou um dos peritos que estava presente na sala. Holmes nem tinha percebido a presença dele até esse momento.
—Que cartomante? – perguntou Sherlock.
—Já ia me esquecendo. – disse o delegado Almeida. Há uma cartomante no meio disso tudo.
E Almeida tentou sintetizar: Camilo se encontrou com uma cartomante, indicada por Rita dias antes, antes de ir para a casa de Vilela, onde foi morto. O tal perito tinha a seguinte versão dos fatos – mais hipótese que fato:
Rita era muito supersticiosa. Cria em certas coisas que a mãe lhe ensinara desde criança. Sabia que os mistérios da vida se escondiam por trás do inexplicável – questões, aliás que nem compensa buscar explicação. A pobre coitada, vivendo o mal do amor proibido, temeu estar perdendo o amante Camilo, outra vítima – até que se prove o contrário – dessa história. Em um ato inconseqüente – um pouco por causa da crença que já foi dita, procurou uma cartomante na Rua da Guarda Velha. Cartomante, aliás, que ela mal conhecia – bastava ser cartomante e já bastava. A coitada revelou mais do que deveria para a trambiqueira – ressaltando que essa é apenas a versão do perito. A velha – outro adjetivo que o formulador da hipótese aqui apresentada deu para a mulher que lia cartas, lia mãos e sei lá mais o que – logo soube que Rita vivia uma vida tranqüila, com bens financeiros inestimáveis, afinal, o marido tinha uma banca de advogado. A pobre Rita não imaginava que a cartomante arquitetava um plano maligno contra os enamorados. Tratou de descobrir onde Camilo morava e começou a escrever as cartas ameaçadoras. Ela ameaçava contar tudo para Vilela. A velha trambiqueira - a cartomante, é claro, tinha o diabo no couro, isso sim: queria ver uma tragédia acontecer em Botafogo.
—Eu não acho – disse Almeida. Tenho quase certeza que tudo foi uma armação de Vilela desde o início.
O delegado começou expor a sua versão, contrariando a do perito que já foi apresentada.
Eis que Vilela e Camilo eram grandes amigos. Os dois, apaixonados por uma mesma mulher: Rita. Essa, casada com o primeiro, mantinha um caso extraconjugal com o segundo. Está certo que Vilela era um tonto por natureza, mas nenhum tonto permanece nessa condição por toda a vida. Não tardou e o marido traído começou a ouvir os cochichos da sociedade carioca acerca da possível traição. É claro que ele negou-se a acreditar. Mas por via das dúvidas, precisava arquitetar um plano para que Camilo parasse de ir em sua casa quando ele estivesse ausente. Começou a escrever as cartas, sem supor sequer que a traição mencionada nos papéis por ele escritos era verdadeira. Atirou no escuro. Camilo parou de ir a sua casa. No entanto, o tiro saiu pela culatra. Rita não parava mais em casa. Um dia o tonto deixou de ser tonto e arrancou a confissão da esposa. Na fúria, matou-a e também ao amante.
—Muito fantasiosa essa versão... – deduziu Holmes.
—E por que não haveria de ser a verdade? – questionou o delegado. Tudo pode acontecer, não é mesmo?
Holmes logo soube da versão da própria vítima, o Camilo. Este suspeitava de que alguém alimentava um amor em segredo por Rita. O pobre enamorado não-correspondido amava muito a moça, e ao descobrir o relacionamento proibido entre Rita e Camilo, começou arder-se em ciúmes. Certamente era um conhecido de Vilela, e depois de muito ameaçar os amantes e não encontrar resultado, denunciou a traição ao marido de Rita, e aconteceu o que aconteceu.
—É possível. – disse Sherlock.
E veio a versão, que para Holmes era a mais pertinente. Quem a formulou foi o próprio delegado. Pelo visto, ele era cheio de versões: Quando Camilo recebeu a primeira carta, ele parou de ir à casa de Vilela. Foi então que começou a se encontrar com Rita escondido, na casa de uma comprovinciana da moça, na rua dos Barbonos. Então, tudo indicava que quem escrevera a carta e denunciara os dois à Vilela fora essa tal comprovinciana. Talvez essa amasse Camilo, ou Vilela.
—Faz sentido. – comentou Holmes, que passou a tarde toda ouvindo várias outras versões. Ele anotou em uma agenda o nome de todos os suspeitos de escrever a carta: Vilela, a cartomante, o apaixonado desiludido, a comprovinciana, a vizinha moralista e mal humorada, os paparazzi, e milhares de outros nomes compunham a lista. No outro dia, bem de manhãzinha, Sherlock Holmes começou a investigação de fato. Passou pela Rua da guarda velha, falou com a cartomante – mulher sinistra, diga-se de passagem, passou pela casa de Vilela – onde aconteceu o crime, observou cada perímetro, as marcações, procurou por prova. Depois foi a muitos outros lugares. Disse que até no fim do dia o mistério estaria solucionado. Foi então que em um surto, teve a dedução certeira, e foi até as instalações do Diário do Rio de Janeiro, e encontrou a resposta que buscava. Como já dizia a sua reputação, Holmes tinha deduções certeiras.
Voltou quase à noitinha para a delegacia, e se encontrou com o delegado e a equipe de peritos, que já o esperavam.
—Resolvi o caso. – Gabou-se Holmes.
—Mas já? – Almeida ficou impressionado.
—Elementar meu caro Almeida. Foi um caso simples de se resolver. Encontrei a resposta no Diário do Rio de Janeiro. Lá trabalha um repórter e jornalista muito próximo das vítimas, quase um pai, eu diria, e que tinha conhecimento de tudo o que acontecia com o triângulo amoroso. Foi ele quem escreveu as cartas e armou tudo para que Vilela descobrisse a traição.
—Quem é esse? – perguntaram todos, curiosos.
—Machado de Assis, conhecem? – perguntou Holmes.
—Já ouvi falar dele. – comentou Almeida.
—Encontrei a seguinte prova do crime: um conto, cujo título é “a cartomante”, que narra todos os fatos que já sabemos, e pelo qual ele assina seu nome no final, pode? Confessou a própria culpa!- disse Holmes.
—Então tudo se esclarece... Agora resta-nos saber onde está Vilela... – falou Almeida.
—Essa já é uma outra história. – falou Sherlock. Algo me faz suspeitar que Machado de Assis está escondendo o dito cujo na casa verde, um hospício fundado por Simão Bacamarte, um outro conhecido próximo, quase outro filho do jornalista. Mas são só suposições.
—compreendo!
E tudo ficou por isso mesmo: Sherlock Holmes voltou para Londres, Almeida continuou no Botafogo, Machado de Assis continuou no Diário do Rio de Janeiro, e nunca mais se soube de Vilela, que continua desaparecido até hoje.